O eu lírico é a voz que se expressa em um poema. Ele é um recurso literário que permite que o autor não se mostre em sua poesia.
Eu lírico é como chamamos ao enunciador do poema, isto é, a voz que se expressa por meio de uma poesia. Ele pode ser masculino ou feminino e apresentar ou não suas características no poema. É, portanto, um recurso literário que afasta a identidade do autor do conteúdo poético. Quem se expressa na poesia é a voz poética e não o autor de carne e osso.
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O eu lírico é a voz que enuncia um poema. Chamado também de voz poética, o eu lírico é um elemento literário e não existe no mundo real. Veja esta estrofe do poema O morcego, de Augusto dos Anjos (1884-1914):
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. |1|
Quem está dizendo isso? Pois bem, a voz que enuncia esses versos é chamada de “eu lírico”. E não deve ser confundida com o autor. Portanto, não é Augusto dos Anjos que se recolhe ao quarto, mas o eu lírico. Essa voz poética é um recurso literário que permite distanciar o autor de seu texto.
Exemplo 1:
Leia esta estrofe do poema Musa impassível, de Francisca Júlia (1871-1920):
Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante.
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero. |2|
Nessa estrofe, o eu lírico diz para a Musa que não quer que ela chore nem fale de amor. Mas sim que celebre Dante e Homero. Isso porque a poesia parnasiana em questão é antirromântica e valoriza elementos da Antiguidade clássica. Portanto, quem dialoga com a Musa é o eu lírico e não a poetisa Francisca Júlia.
Exemplo 2:
Leia também esta estrofe do poema Presságio, de Hilda Hilst (1930-2004):
Stela, me perguntaram
se permaneces no tempo.
Se teu rosto de coral
e teus cabelos de pedra
ficarão indefinidos
no espaço, pedindo sol. |3|
Nesse fragmento de poema, o eu lírico diz para Stela que alguém perguntou (ao eu lírico) se ela permanece no tempo, se o rosto e os cabelos dela “ficarão indefinidos”. Observe que Stela, provavelmente, é um personagem fictício. E quem dialoga com ela é o eu lírico e não a poetisa Hilda Hilst.
Identificar o eu lírico é fácil. É só perguntar: “Quem é que está expressando esses versos?”. Quem expressa os versos é sempre o eu lírico, uma voz poética, e não o autor ou autora. Veja, por exemplo, este trecho do poema Linhagem, da poetisa Adélia Prado:
Minha árvore ginecológica
me transmitiu fidalguias,
gestos marmorizáveis:
meu pai, no dia do seu próprio casamento,
largou minha mãe sozinha e foi pro baile.
Minha mãe tinha um vestido só, mas
que porte, que pernas, que meias de seda mereceu!
[…] |4|
Então, “Quem é que está expressando esses versos?”. A resposta é: “O eu lírico”. Afinal, nós leitores não podemos afirmar (nem comprovar) que o pai de Adélia Prado “largou” sua “mãe sozinha e foi pro baile”. Pode acontecer, eventualmente, de o eu lírico coincidir com o autor do poema, no caso de uma poesia autobiográfica. Mas isso é um exceção. A regra é que a voz que enuncia o poema é o eu lírico.
Enquanto o eu lírico não existe na vida real, caracterizando-se como um recurso literário, o poeta faz parte da realidade. Assim, o eu lírico pode ser feminino ou masculino, pessoa ou coisa, e até mesmo um animal. Também pode ser uma voz não caracterizável, já que apenas enuncia, sem mostrar características próprias. Veja, por exemplo, esta estrofe do poema À Bahia, do poeta Gregório de Matos (1636-1696):
Tristes sucessos, casos lastimosos,
Desgraças nunca vistas, nem faladas,
São, ó Bahia! vésperas choradas
De outros que estão por vir mais estranhosos. |5|
Nessa estrofe isolada, não há características do eu lírico. Mas sabemos que é ele quem se expressa. Se afirmamos que é Gregório de Matos, um ser real, afirmamos também que ele está conversando com a Bahia, que não é uma pessoa, e sim, no poema, a personificação de um lugar.
O afastamento da voz autoral permite a nós leitores analisar o poema de forma mais objetiva. Assim, não importa quem era o autor, quais eram suas preferências, seus defeitos, suas ideologias, seus traumas etc. O poema é a representação da realidade e não a realidade em si. E não está limitado a uma temática autobiográfica.
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Questão 1
(Enem)
Antiode
Poesia, não será esse
o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:
flor! Não uma
flor, nem aquela
flor-virtude — em disfarçados urinóis).
Flor é a palavra
flor; verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.
Flor é o salto
da ave para o voo:
o salto fora do sono
quando seu tecido
se rompe; é uma explosão
posta a funcionar,
como uma máquina,
uma jarra de flores.
MELO NETO, J. C. Psicologia da composição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997 (fragmento).
A poesia é marcada pela recriação do objeto por meio da linguagem, sem necessariamente explicá-lo. Nesse fragmento de João Cabral de Melo Neto, poeta da geração de 1945, o sujeito lírico propõe a recriação poética de
A) uma palavra, a partir de imagens com as quais ela pode ser comparada, a fim de assumir novos significados.
B) um urinol, em referência às artes visuais ligadas às vanguardas do início do século XX.
C) uma ave, que compõe, com seus movimentos, uma imagem historicamente ligada à palavra poética.
D) uma máquina, levando em consideração a relevância do discurso técnico-científico pós-Revolução Industrial.
E) um tecido, visto que sua composição depende de elementos intrínsecos ao eu lírico.
Resolução:
Alternativa A.
O sujeito lírico (ou eu lírico) propõe a recriação poética da palavra “poesia” ou “flor”, pois são sinônimas no contexto do poema.
Questão 2
(Enem)
O farrista
Quando o almirante Cabral
Pôs as patas no Brasil
O anjo da guarda dos índios
Estava passeando em Paris.
Quando ele voltou de viagem
O holandês já está aqui.
O anjo respira alegre:
“Não faz mal, isto é boa gente,
Vou arejar outra vez.”
O anjo transpôs a barra,
Diz adeus a Pernambuco,
Faz barulho, vuco-vuco,
Tal e qual o zepelim
Mas deu um vento no anjo,
Ele perdeu a memória.
E não voltou nunca mais.
MENDES, M. História do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
A Obra de Murilo Mendes situa-se na fase inicial do Modernismo, cujas propostas estéticas transparecem, no poema, por um eu lírico que
A) configura um ideal de nacionalidade pela integração regional.
B) remonta ao colonialismo assente sob um viés iconoclasta.
C) repercute as manifestações do sincretismo religioso.
D) descreve a gênese da formação do povo brasileiro.
E) promove inovações no repertório linguístico.
Resolução:
Alternativa B.
No poema, o eu lírico “remonta ao colonialismo assente sob um viés iconoclasta”, já que menciona Cabral (sinônimo de colonização). É um colonialismo assente (apoiado) sob um viés iconoclasta, ou seja, que não reverencia elementos tradicionais. Isso está evidente ao dizer que Cabral (um importante personagem histórico) tinha “patas”.
Notas
|1| ANJOS, Augusto dos. O morcego. In: ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 42. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
|2| SILVA, Francisca Júlia da. Musa impassível. In: SILVA, Francisca Júlia da. Mármores. Brasília: Senado Federal, 2020.
|3| HILST, Hilda. Presságio. In: HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
|4| PRADO, Adélia. Linhagem. In: PRADO, Adélia. O coração disparado. Rio de Janeiro: Record, 2013.
|5| MATOS, Gregório de. À Bahia. In: MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. Seleção de José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Fontes
ABAURRE, Maria Luiza M.; PONTARA, Marcela. Literatura: tempos, leitores e leituras. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2015.
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 42. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. Seleção de José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
PRADO, Adélia. O coração disparado. Rio de Janeiro: Record, 2013.
SILVA, Francisca Júlia da. Mármores. Brasília: Senado Federal, 2020.
Famoso poeta brasileiro, fez parte da segunda geração romântica.
O predicado é um termo essencial da oração que faz uma afirmação sobre o sujeito.
Indica uma condição em relação a um verbo, adjetivo ou outro advérbio.
Podem provocar efeitos indesejados na comunicação, entre eles a ambiguidade.
As palavras aportuguesadas são aquelas de origem estrangeira que foram adaptadas às normas ortográficas da língua portuguesa.