Maria Firmina dos Reis

Por Luiza Brandino

Maria Firmina dos Reis é considerada uma das primeiras mulheres brasileiras a escrever um romance e também a primeira escritora negra de nosso país. Seu romance, Úrsula, publicado pela primeira vez em 1859, é também um precursor da literatura antiescravista e da produção literária negra no Brasil, ou seja, da literatura que aborda o tema da negritude a partir da perspectiva do próprio negro. Obra e autora ficaram por muitos anos esquecidos e apagados do cânone nacional: embora Maria Firmina tenha recebido homenagens à época de sua publicação, estas não alçaram, até hoje, os devidos reconhecimentos e méritos.

Dona de uma primorosa expressão literária e de uma biografia comprometida com a luta por direitos e equidade educacional, Maria Firmina dos Reis é uma grande pioneira na literatura e na história nacionais.

Leia também: Castro Alves – poeta romântico que também imprimia em sua produção o caráter abolicionista

Biografia de Maria Firmina dos Reis

Maria Firmina dos Reis nasceu na Ilha de São Luís (MA), em 11 de outubro de 1825. Filha de pai negro e mãe branca, recebeu um registro paterno fraudulento e passou boa parte de sua vida na casa da tia materna, que tinha melhores condições materiais. Foi também na casa dessa tia que Firmina tomou contato com as referências culturais que a encaminharam para o trabalho com as letras e com a educação.

Em 1847, foi a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público no Maranhão. Tornou-se professora, ocasião em que se recusou a desfilar em um palanque nas costas de escravizados pelas ruas de São Luís. A postura antiescravista foi uma tônica que atravessou sua vida e obra, embora, à época, fosse difícil para uma mulher manifestar sua opinião a respeito da escravatura – para uma mulher negra, isso era praticamente impensável.

Busto de Maria Firmina na Praça do Pantheon, em São Luís (MA). Não existe retrato da autora, e a escultura foi feita a partir de um retrato falado. [1]
Busto de Maria Firmina na Praça do Pantheon, em São Luís (MA). Não existe retrato da autora, e a escultura foi feita a partir de um retrato falado. [1]

O prestígio alavancado por sua carreira na docência foi o que possibilitou a publicação do romance Úrsula, em 1859, assinado sob o pseudônimo “Uma maranhense”. Maria Firmina foi professora da Instrução Pública maranhense até sua aposentadoria, em 1881, quando passou a lecionar para os filhos de lavradores e fazendeiros no povoado de Maçaricó.

É dela o mérito da fundação da primeira escola mista e gratuita do Brasil, nesse mesmo ano de 1881, escandalizando o povoado de Maçaricó e sendo obrigada a fechar as portas da escola depois de dois anos e meio. Entretanto, a firmeza de sua reputação como docente era inegável: em 1880, obteve o primeiro lugar em História da Educação Brasileira, rendendo-lhe o título de Mestra Régia.

Além da docência, Maria Firmina foi compositora, folclorista e colaborou frequentemente com a intelectualidade e com a imprensa local, publicando com frequência em jornais maranhenses. Muito de sua obra não editada, no entanto, foi perdida ao longo dos vários anos de tácito esquecimento: depois de sua morte, o guardião de seus manuscritos, seu filho adotivo Leude Guimarães, teve os pertences roubados em um hotel – junto a eles se foi o que restara dos escritos da autora.

Maria Firmina dos Reis faleceu em Guimarães, em 11 de novembro de 1917, pobre e cega.

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Contexto histórico

O século XIX correspondeu a um longo período de declínio da escravatura brasileira, cuja extinção em vias oficiais só se deu em 1888. A emancipação dos escravizados deu-se de maneira gradual, respondendo a pressões do mercado externo, cuja industrialização exigia uma mudança na força de trabalho, baseada em salários: a gênese do capitalismo financeiro. Para isso, o Império brasileiro, cuja independência com relação à metrópole portuguesa foi decretada em 1822, tomou medidas vagarosas e que não afrontassem diretamente os grandes latifundiários e o muito lucrativo comércio escravista.

Foi apenas em 1850 que entrou em vigor a Lei Eusébio de Queirós, que proibia no Brasil o tráfico de escravizados sequestrados das costas africanas. A legislação foi pouco eficaz, dando a possível origem da comum expressão “para inglês ver”, sinônimo de enganação: proibiu-se o comércio de escravizados em termos oficiais, mas os traficantes, latifundiários e fiscais frequentemente fraudavam as vistorias, de modo que a aprovação da lei não representou a automática extinção da prática.

Duas décadas depois, em 1871, o Império aprovava a Lei do Ventre Livre, que garantia alforria para os filhos de escravizados que nascessem a partir de então, embora coubesse ao “senhor de escravos” escolher em que momento daria alforria ao recém-nascido. Em 1885, aprovou-se a Lei dos Sexagenários, um termo oficial que surgiu como reação conservadora dos latifundiários escravocratas ao avanço do movimento abolicionista, pois previa alforria automática ao escravizado com mais de 60 anos, mas sob pena de indenização, paga em mais três anos de trabalho escravo.

A sociedade maranhense, por sua vez, via-se inserida no muito lucrativo comércio de escravizados desde 1755, quando se criou a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, movimentando sua economia a partir da monocultura de algodão e também do comércio de escravizados, servindo como grande porta de entrada para boa parte da mão de obra escrava do Norte da colônia.

O século XIX trouxe novos desafios para a economia maranhense, com as quedas do preço internacional do algodão. Moveram-se então produções de açúcar, que logo encontraram concorrência no mercado internacional: já na metade do século, as exportações açucareiras das Antilhas quebraram a produção maranhense, marcando os Oitocentos como um momento de grande decadência do sistema agroexportador no Maranhão.

Foi também um momento marcado por insurreições e revoltas, como a Setembrada, movimento que leva esse nome por ter se iniciado em setembro de 1831. De forte caráter antilusitano, a Setembrada era uma reação à abdicação de Dom Pedro I e levantava, na então província do Maranhão, a necessidade de se repensar a política do Brasil independente, exigindo a exoneração de portugueses em cargos de eleição popular, entre outras questões. Alguns anos depois, em 1838, levanta-se no Maranhão a revolta da Balaiada, cujo estopim foi o declínio da cultura algodoeira e os privilégios das elites em face da miséria do povo. Mais de três mil escravizados uniram-se a essa causa, dando um especial matiz racial (e abolicionista) ao movimento.

Leia também: Fases do Romantismo – características marcantes de cada geração

Características literárias de Maria Firmina dos Reis

Maria Firmina dos Reis é autora de uma literatura crítica: sua produção é atravessada pelas questões raciais e de gênero. Há um fio condutor político que norteia seus escritos ficcionais, de modo que suas personagens expressam a consciência libertária da autora. Não são ausentes as características em comum com o Romantismo: nas obras da autora, também têm lugar a exaltação da natureza e o indianismo. Mas a beleza da pátria é realçada para depois ser contrastada com as agruras oficializadas da situação do cativeiro. E não há idealização nacional ou amorosa, mas descaminhos, desilusões e uma forte crítica social.

Maria Firmina utilizou-se da característica romântica do amor idealizado como mecanismo para desviar a atenção do patriarcalismo escravocrata imperial das questões que vibravam nas entrelinhas de seu texto, a saber, a condição das mulheres e dos escravizados no território nacional.

Como autora negra, Maria Firmina apresenta à literatura brasileira uma proposta até então ignorada: a representação do escravizado humanizado e do opressor animalizado, em franca solidariedade com os cativos. Além disso, a autora coloca como protagonistas a mulher e o negro, a partir de uma condição biográfica próxima das personagens de seus escritos ficcionais, diferentemente da literatura do período, sempre centrada na masculinidade e na branquitude, onde mulheres e negros eram abordados a partir do ponto de vista do colonizador.

Obras de Maria Firmina dos Reis

Boa parte dos manuscritos e obras não editadas da autora não sobreviveu ao passar dos séculos. Sua obra de estreia é o romance Úrsula, de 1859. A ele se sucedeu o conto Gupeva, romance brasiliense, em 1861; o livro de poemas Cantos à beira-mar e o conto A escrava, de 1887. Também é de autoria de Maria Firmina dos Reis um hino em louvor à abolição, o “Hino da Libertação dos Escravos”.

Gupeva, romance brasiliense foi publicado em forma de folhetim pela primeira vez entre outubro de 1861 e janeiro de 1862, no semanal O Jardim dos Maranhenses. É uma narrativa épica de caráter indianista que se dedica a pensar o lugar do indígena na sociedade brasileira, bem como o mito da fundação da nação brasileira.

Cantos à beira-mar (1871) traz um apanhado da obra lírica da autora, destacando-se sua constante sensibilidade, inquietude e enfrentamentos à sociedade patriarcal e escravocrata dos Oitocentos.

A escrava, conto publicado pela primeira vez na Revista Maranhense, em 1887, então às vésperas da oficialização da abolição da escravatura, representa um auge na maturidade intelectual da autora. A narrativa é centrada no debate entre abolicionistas e escravocratas, iniciando-se já com um ataque direto à Igreja Católica, até então favorável à escravidão, mostrando as discrepâncias entre os ideais da fé e as práticas da instituição.

  • Úrsula

Folha de rosto da primeira edição do romance Úrsula, publicado em 1859, principal obra literária de Maria Firmina dos Reis.
Folha de rosto da primeira edição do romance Úrsula, publicado em 1859, principal obra literária de Maria Firmina dos Reis.

Obra de maior destaque da autora, foi publicada pela primeira vez em 1859, em São Luís (MA). A epígrafe do livro leva os seguintes dizeres: “A mente, esta ninguém pode escravizar.”, adiantando a temática que permeia todo o romance.

Escrito em terceira pessoa, em desdobramentos lineares dos acontecimentos, Úrsula tem início com o encontro entre Túlio, um jovem negro escravizado, e Tancredo, um rapaz branco. Túlio salva a vida de Tancredo, algo pouco usual para a época, e do sentimento de gratidão do rapaz salvo passa a nascer uma amizade mútua. A construção da personagem de Túlio é uma franca crítica ao caráter desumanizador e degradante da escravidão: na direção contrária da intelectualidade eugenista da época, que pintava o negro como exemplar de uma raça inferior e destituído de civilidade, Maria Firmina mostra Túlio como um rapaz de moral superior, cujo maior problema é lidar com a adversidade da sociedade escravocrata.

Túlio encaminha Tancredo para ser tratado em casa de seus senhores, e lá tem início o principal triângulo amoroso da narrativa: Tancredo apaixona-se por Úrsula, que é desejada também por seu tio, o Comendador Fernando P., um grande vilão, retrato de todos os males terrenos.

À moda dos folhetins românticos, o embate do triângulo amoroso ocupa o papel central, mas nesse caso serve como subterfúgio para que a autora conduza as discussões que realmente lhe interessam, por meio de encaixes de pequenas histórias nas quais outras personagens narram reminiscências de suas vidas, com destaque especial para Mãe Susana, que conta como sobreviveu aos porões dos navios dos “caçadores de almas” e à vida em sua pátria antes de ser sequestrada e escravizada.

Crédito da imagem

[1] Ramsessantos / Commons

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